CPI da Covid: por que os preços das vacinas variam tanto no Brasil?

Notícias | 20/07/21

Publicado em: 20 de jul. de 2021

Por: Mário Scheffer

 

O general Eduardo Pazuello, quando foi ministro da Saúde, registrou em vídeo o interesse do governo em comprar por US$ 28 a dose da vacina Coronavac.

A farmacêutica chinesa Sinovac Biotech esclareceu que apenas o Instituto Butantan está autorizado a negociar o imunizante no Brasil, vendido a US$ 10,8, conforme os últimos contratos com o Ministério da Saúde.

A operação suspeita introduz mais uma obscura empresa intermediadora no escândalo das vacinas – a World Brands Distribuição. E cristaliza a tese da CPI de que a gestão de Pazuello foi marcada pela compreensão rudimentar sobre a pandemia e por níveis equivalentes de incompetência técnica e imoralidade nos negócios com recursos do SUS.

Graças à CPI veio à luz como pode surgir o sobrepreço em compras do SUS, definido por uma cadeia complexa de atravessadores, que se aproveitam de agentes públicos corrompíveis, falhas regulatórias e fiscalização frouxa, ainda mais num momento de escassez do insumo, aquisições emergenciais e flexibilidades administrativas.

Nos questionamentos da CPI sobre compras de vacinas, tanto de doses contratadas quanto nas tratativas inconclusas, frequentemente o foco recai no superfaturamento do preço unitário dos imunizantes.

Há, pelo menos, quatro situações que não devem ser confundidas:

1) Nos casos mais suspeitos, as vacinas são oferecidas a preços altos por empresas que não têm sequer a autorização do fabricante para fazer o negócio. Foi assim que a Davati Medical Supply tentou vender a vacina da AstraZeneca por US$ 15,5 a dose, e que a World Brands tentou emplacar a Coronavac por US$ 28.

2) Preços discrepantes têm sido praticados para o mesmo imunizante no Brasil. É o caso da vacina AstraZeneca, cujo valor, no primeiro contrato entre a farmacêutica e a Fiocruz era de US$ 3,1 a dose, em setembro de 2020, e de US$3,4 a dose, em julho de 2021. Já em fevereiro de 2021 foram pagos US$ 5,4 por dose pronta, comprada do Instituto Sérum. E, ainda, a mesma vacina chegou ao Brasil ao preço de US$4,3 a unidade, na primeira remessa do consórcio Covax Facility, da OMS. Este valor unitário não é definitivo, deve ser ajustado pelo Covax de acordo com o cronograma de entregas e a variação de preço do fabricante, que pode não ser o mesmo a cada remessa.

Outro exemplo é o valor da dose da Sputinik, a US$ 12,4, em contrato recebido pela CPI, acima de US$ 9,9 previstos no Termo de Compromisso, para importação emergencial, assinado diretamente por governos estaduais com o Fundo Soberano Russo.

3) Nota-se, ainda, o preço divergente da mesma vacina, comparando o valor que o Brasil pagou e os que são praticados em outros países. A União Europeia chegou a adquirir a vacina da AstraZeneca por US$ 2,15 a dose, e a vacina da Janssen por US$ 8,50, menos que os US$ 10 pagos pelo Brasil. Na Índia, onde está sediada, a Bharat Biotech fornece a Covaxin ao governo central por US$ 2 a dose.

4) Por fim, o preço cobrado varia conforme o fabricante e a tecnologia empregada. Toma-se como exemplo os Estados Unidos, onde a vacina da Pfizer, a mais cara, custa US$19,50 e a da AstraZeneca, a mais barata, custa US$ 4.

Dentre muitas contribuições da CPI, uma delas é evocar a discussão sobre os preços das vacinas, recolocando-a também em um contexto global.

Natureza do fabricante, arranjos públicos e privados para a pesquisa e o desenvolvimento, tecnologias envolvidas, patentes, custos de produção e quantidades adquiridas são fatores que justificam em parte a grande variação do preço entre imunizantes.

Vacinas que exigem uma única dose tendem a ser mais baratas ao final, e custos de produção e distribuição são maiores para vacinas baseadas em RNA, que requerem armazenamento refrigerado especial.

Já os valores discrepantes praticados no mundo para a mesma vacina do mesmo fabricante podem embutir decisões corporativas de praticar preços diferenciados, acordos bilaterais negociados secretamente, formas de pagamento, momento e volume das encomendas.

O Brasil continuará demandando quantidade hiperbólica de doses de vacinas. Das 300 milhões de unidades minimamente necessárias para vacinar a população adulta até o final de 2021, somente 100 milhões haviam sido aplicadas até julho, e as demais integram acordos comerciais em andamento.

Provavelmente o vírus SARS-CoV-2 será endêmico no Brasil e no mundo, e a vacinação deve ocorrer pelo menos uma vez por ano, para reforçar a imunidade e proteger contra novas variantes do vírus que podem surgir. Novos grupos populacionais, como crianças e adolescentes acima de 12 anos, deverão ser incluídos na vacinação.

O aumento expressivo da demanda requererá maior oferta com a incorporação de novos imunizantes no Plano Nacional de Imunização, o investimento na capacidade de produção nacional, a negociação de preços com empresas farmacêuticas e a manutenção de boas relações diplomáticas e comerciais com países fabricantes como China, Índia e Rússia.

Será necessária uma combinação de todos os mecanismos possíveis: importar vacinas prontas; usar a tecnologia já incorporada e dominada pelos laboratórios públicos nacionais; fazer contratos para transferência tecnológica, o que prevê antes a etapa de importação da matéria da prima para a produção local; obter a licença de fabricação, que pode ser voluntária ou compulsória; ou desenvolver uma vacina “100% nacional”, inovação que vem sendo buscada pelo Instituto Butantan.

Em julho de 2021, além das vacinas contra a covid já aprovadas, estavam em desenvolvimento no mundo 99 novas candidatas, sendo 19 delas já em fase avançada de ensaios clínicos.

A entrada de mais concorrentes no mercado, associada ao grande poder de compra do SUS, pode fazer diminuir o preço. Por outro lado, há o exemplo da vacina contra a gripe, renovada anualmente, produzida por vários fabricantes, com intensa comercialização privada fora do SUS, sem que sejam praticados preços mais baixos a ponto de contribuir decisivamente com a ampliação da cobertura vacinal.

Uma das medidas defendidas mundialmente, para aumentar a produção e baratear o preço da vacina contra a covid, é a suspensão temporária das patentes, proposta que conta com o apoio da Organização Mundial do Comércio (OMC) e de países como Estados Unidos, África do Sul e Índia.

Antes contrário, o que gerou vexame e constrangimento internacional, o governo brasileiro passou recentemente a apoiar a iniciativa.

Existe um movimento global para tornar a vacina contra a covid um “bem público”. São consideradas as desigualdades no acesso a vacinas, a oferta atualmente concentrada nos países ricos, e o fato de boa parte dos imunizantes ter sido desenvolvida com bilhões de dólares de recursos governamentais ou em centros de pesquisa e instituições públicas.

Questiona-se a obtenção de lucros exorbitantes durante uma pandemia. Um estudo do Imperial College de Londres, por exemplo, demonstrou que o custo de produção de uma dose da vacina da Pfizer é de 0,50 euros, vendida hoje entre US$ 10 e US$ 20, conforme o país.

Mesmo fabricantes como a AstraZeneca e a Janssen, que até agora afirmam fornecer vacinas a preço de custo, pretendem mudar de política assim que a emergência sanitária deixar de ser decretada nos países.

O assunto da abolição das patentes, contudo, arrefeceu, devido à forte oposição da União Europeia, Reino Unido e Japão.

A providência, em tese, facilitaria a transferência de tecnologias para que países como o Brasil pudessem aumentar a produção local, sem depender de acordos bilaterais com fabricantes.

Por certo, existirão obstáculos tecnológicos para o Brasil produzir as vacinas mais complexas, como as feitas com RNA mensageiro e, como atestam as dificuldades enfrentadas por Fiocruz e Butantan, não são poucas as barreiras estruturais para a produção local em grande escala.

De qualquer forma, está em análise, no Congresso Nacional, o Projeto de Lei 12/21, aprovado pela Câmara dos Deputados e retornado ao Senado Federal, que muda a legislação nacional de patentes.

Já o Supremo Tribunal Federal (STF) suspendeu liminarmente, em maio, a vigência de regra que prorrogava no País as patentes de medicamentos e produtos farmacêuticos.

Há, no Brasil, um precedente de “quebra” de patente. Em 2006, o governo federal decretou o licenciamento compulsório do efavirenz, um medicamento anti-HIV. Isso foi determinante para a melhoria da capacidade tecnológica e de produção nacional de antirretrovirais genéricos, estratégicos para garantir o acesso universal ao tratamento da aids no SUS.

A CPI, na sua prorrogação, precisa seguir investigando a fundo a variabilidade dos preços das vacinas no Brasil, pois as aquisições exigirão investimentos vultosos e sustentáveis do SUS. Até junho de 2021 o governo federal já havia comprometido R$ 26,3 bilhões na compra de imunizantes.

Além de indiciar responsáveis pelo descontrole da pandemia e propor medidas preventivas contra a corrupção nas compras do SUS, a comissão de inquérito do Senado Federal têm mandato para liderar a elaboração de um plano nacional sobre vacinas e vacinação.

Tal planejamento deve incluir financiamento adequado do SUS, mecanismos de negociação de preços justos, avaliações de custo-efetividade antes da incorporação de novos imunizantes, flexibilização de patentes, transferência de tecnologias e investimento excepcional na construção da capacidade nacional de produção de vacinas contra a covid-19.

 

Fonte: Estadão